ARTE MATERNA

Em meus pais, que formavam um casal harmônico, percebia-se uma nítida separação das aptidões. Luiz, com suas múltiplas profissões entre as quais se incluía a de professor de várias disciplinas, era detentor de uma vasta cultura. Forjada esta na formação acadêmica e na leitura das obras de referência sobre a História Universal. Enquanto Elda, com o pendor e a sensibilidade para as artes, era em quem afloravam as manifestações artísticas no âmbito do casal.
Não se trata de aqui dizer que Luiz fosse insensível às artes. Ele sabia apreciar uma boa música, fosse de natureza erudita ou popular, uma gravura de um pintor renascentista, ou um texto de um autor clássico. Apenas não era um artista, no sentido de ser alguém que produzisse arte (*).
Como acontecia com Elda, sem dúvida. Ainda adolescente, e já a mostrar sua desenvoltura na arte de desenhar. Criando no papel, ora a imagem de um rosto feminino, ora a cena de uma natureza morta, e tudo com grande perfeição. Através de uma técnica em que ela combinava crayon e fuligem (que obtinha de um lampião a querosene) sobre papel, a fim de realizar seus desenhos, em geral figurativos. Guardo na memória os traços existentes num dos seus quadros, um rosto de mulher, que, de uma das paredes de nossa casa, sorria enigmaticamente para a minha meninice.
Certa ocasião, Elda também chegou a pintar, com óleo sobre vidro, a imagem de um pavão. Que impressionou bastante o seu Tio José, um dos proprietários da Usina Ceará, a ponto de ele requisitar o quadro para colocá-lo em seu escritório. Unindo assim o útil ao agradável, já que a ave representada na pintura era também o símbolo do Sabão Pavão, um dos produtos de sucesso da fábrica.
Infelizmente, este e outros quadros que Elda desenhou não são atualmente localizáveis.
Com o casamento, deu-se que a mãe sobrepujou a pintora. Porque vieram os encargos domésticos relativos a uma prole que foi ficando numerosa. Encargos esses que, por muitos anos, não lhe permitiam exercitar o seu dom de pintar. Naqueles tempos da arte sufocada, Elda derivou para os bordados domésticos, aos quais emprestava o melhor de seu talento. Mas, no fundo, sempre alimentando a idéia de que algum dia retornaria às lides artísticas.
O que um dia aconteceu. Quando, levada pela mão de sua amiga Hilda Ramos, Elda passou a freqüentar um curso de tapeçaria no centro de Fortaleza. Com os filhos já criados, ela enfim recuperava o tempo necessário para o aprendizado de uma forma de arte! E, cerca de quatro meses após, lá estava ela a receber, das mãos do Governador César Cals, o certificado de conclusão do curso. Com louvor inclusive, por haver sido a mais aplicada aluna da turma.
Nestes últimos 30 anos, Elda já produziu cerca de 120 peças que, nos muitos lares e instituições em que se encontram, estão a esbanjar graça e beleza. Algumas delas são reproduções em tapeçarias dos quadros de Mucha, um ilustrador tcheco de sua especial predileção. Outras representam idílicas cenas européias (Dona Elda se define como uma romântica). E ainda há aquelas que são de inspiração religiosa.
Em meu acervo existem duas de suas obras, as quais exibem belos desenhos geométricos. Duas outras, que decoraram um chalé que foi de minha propriedade em Porto das Dunas, atualmente, doadas para meu filho Érico, estão em seu apartamento. A fim de que o neto Matheus se familiarize com o Carlitos (numa cena do filme “O Garoto”) e com o Gordo e o Magro.
(E ainda possuo um grande quadro de tapeçaria, que representa a imagem de uma porta em meio a alguns "arabescos"; mas sendo este da lavra de minha falecida irmã Marta, a qual precedeu a nossa mãe nessa modalidade de arte.)
Toda essa produção artística de Elda é feita sem objetivo pecuniário. A mãe tapeceira tem o arraigado costume de presentear com o que faz as pessoas de sua estima. E de se considerar bem paga, apenas por ter o seu trabalho reconhecido. Não admite, porém, saber que o favorecido deu um destino inadequado a qualquer de suas obras. Cada quadro é uma espécie de filho a receber suas atenções para sempre.
Laerte José, um dos genros da matriarca, já organizou um álbum fotográfico em que todas as suas obras foram catalogadas. E, mais recentemente, produziu um DVD sobre esta arte materna. Constando de uma parte inicial, em que ela é entrevistada (pelo próprio Laerte, no melhor estilo Fernando Faro), e de uma parte subseqüente em que há uma grande mostra de suas tapeçarias.
Elda tem um grande amor à arte que pratica. Quem a visita certamente vai encontrá-la na varanda de seu apartamento, com tela, agulha e linha à mão. A preparar uma de suas novas peças. Isto com a tarimba de quem, na arte secular da tapeçaria, conhece 74 tipos de pontos e sabe, com exatidão, onde e como aplicá-los.


Paulo Gurgel Carlos da Silva
In: "Dos canaviais aos tribunais
- a vida de Luiz Carlos da Silva"

(*) Durante a elaboração do livro, foram descobertos por Marcelo Gurgel alguns textos literários escritos por nosso pai (quase todos do período 1937 - 40), reveladores da grande habilidade de Luiz Carlos da Silva para a arte de escrever.

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